segunda-feira, 11 de julho de 2011

Morte ao judeu errante!



         Walter Scott (1771-1832), escritor britânico, foi o inventor do gênero ‘romance histórico’, no qual a trama se desenrola no meio de eventos supostamente reais. Um exemplar disso é Ivanhoe[1] (1819), onde o personagem principal regressa das Cruzadas e auxilia o rei Ricardo Coração de Leão a recuperar o trono, ao final do século XII. Outro personagem desse romance é o judeu Isaac de York. Perseguido por quase todos, foi protegido por Ivanhoé ao longo da narrativa por dois motivos: 1) não podia se proteger sozinho e 2) sendo o ‘mocinho’ uma pessoa boa e generosa, não deixaria os fortes oprimirem os fracos.
         Isaac de York reflete, numa confluência do medievalismo idealizado nos oitocentos com as ideologias dos Estados nacionais, um estereótipo duplo: era um usurário pecador segundo os medievos cristãos, e ficava à margem da ‘vida nacional’, recusando os valores fundamentais da nação. Era o judeu errante: um perigo aos valores estabelecidos. Algo bem interessante e revelador é o fato que o judeu errante não precisa ser necessariamente judeu. Wachirawut, monarca do Sião (1910-1925), estudou na Inglaterra e importou o nacionalismo e antissemitismo europeus. Contudo, ele identificou os comerciantes chineses, estabelecidos no reino, como inimigos em dois panfletos bem virulentos: Os judeus do oriente (1914) e Travas nas nossas rodas (1915).[2]
         Segundo Jacques Lacan, a identidade do ser é construída sempre em contato com o(s) outro(s). Do ponto de vista semântico, não se pode dizer o que algo é, sem dizer o que não é. O civilizado existe em função do bárbaro, o bonito o é em relação ao feio e assim por diante. Mutatis mutandi, a identidade nacional sempre é construída em confronto com os que não se encaixam no modelo nacional. Imaginemos uma sala com um gaúcho, um mineiro e um acreano. As diferenças entre os três serão gigantescas. No momento em que um argentino for introduzido no ambiente, os três se reuniriam num canto e proclamariam: “não somos isso! Somos brasileiros!”
         Para construir a imagem nacional – obviamente isso não é feito numa reunião secreta, como descrito em diversas teorias da conspiração – o estereótipo do inimigo é fundamental. Estereótipo, pois não há necessariamente qualquer correspondência com grupo de seres viventes. Há uma frase bem reveladora do Reichsmarshall nazista Hermann Göring: “eu decido quem é judeu e quem não é”. A categoria pode ser imputada a qualquer um. Assim, o ‘judeu’ na Alemanha Nazista não era necessariamente judeu. Ele tornou-se a base para definir o 'inimigo objetivo'. Os inimigos objetivos (vide Hannah Arendt[3]) não precisam fazer nada errado, já que eles são portadores de tendências perigosas ao Estado. Podem e devem ser eliminados.
         Obviamente a figura do judeu errante não está circunscrita ao passado. Existe ainda hoje e não há sinais de que vá desaparecer tão cedo. Na década de 1950, nos Estados Unidos, o judeu errante era o comunista; no século XXI, o terrorista. Na extinta União Soviética, era o pequeno burguês ou o contrarrevolucionário ou o kulak (camponês remediado); os três tipos acabavam confluindo num só. Em Israel, o judeu errante é o palestino.
          O jurista alemão Carl Schmitt definia o soberano como aquele que decide sobre o estado de exceção.[4] Podemos avançar nessa definição – como já fez Vladimir Safatle,[5] embora de modo tímido – e definir o soberano como quem aponta os ‘judeus errantes’. Mais do que excluí-los da proteção legal do Estado, eles se convertem em objeto de temor e ódio das massas. Nada como um inimigo para unir o corpo, levar a culpa e calar os dissidentes.



[1] Walter Scott. Ivanhoe. London: Penguin Books, 1994.
[2] Benedict Anderson. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 149.
[3] Hannah Arendt. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
[4] Carl Schmitt. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 07.
[5] Vladimir Safatle. ‘Do uso da violência contra o Estado ilegal’. In Edson Teles & Vladimir Safatle (org). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, pp. 238-9, n. 03.

8 comentários:

  1. Apesar de já conhecer o conceito do "judeu errante" graças a suas aulas, gostei muito to texto. Continue com o blog! Grande abraço!

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  2. Acho que podemos atualizar melhor essa questão.
    Morte às crianças do Islã. Morte às crianças muçulmanosas.
    Morte a tudo que questiona a cultura dos mais poderosos e desestabiliza seu poder.
    Essa questão do judeu já está batida. É bonito defender os judeus.
    Agora questiona sobre os islãs?
    Fala que um dia os homens foram crianças inocentes e o mundo deixou eles crescerem numa cultura onde se tornariam perversos terroristas... etc e tal
    tem que respeitar a soberania dos países.
    Então somos todos cúmplices. Formamos os bodes expiatórios do momento para esconder nossa imundície?
    Não é estranho?
    Pra que ONU? Etc?
    Pra que uma Organização Internacional de Direitos Humanos?
    Se a soberania de cada país e seus absurdos estão em primeiro lugar?
    O mundo apoia a transformação de crianças em monstros para depois puni-los?
    Não é um sistema mundial imundo e perverso?
    Eu não sei nada dessa área em termos de estudo. Não tenho estômago nem pra lidar com o pouco que vejo. Mas, pra mim, Rosseau falou uma verdade que é básica: -"O homem é naturalmente bom, a sociedade que o corrompe"
    Vivemos num mundo que constrói sub-mundos para serem seus bodes expiatórios.
    vivemos num mundo que produz guerra.
    até pra não haver aumento exagerado da população em detrimento dos bens de consumo.
    Não somos mais tão crianças a ponto de conseguirmos não ver tudo isso. ...
    Duro é ver o quanto somos impotentes e covardes diante da real realidade.
    É o jeito. ... confesso que também acabo optando pelo joguinho do faz de conta...

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Acho que podemos atualizar melhor essa questão.
    Morte às crianças do Islã. Morte às crianças muçulmanosas.
    Morte a tudo que questiona a cultura dos mais poderosos e desestabiliza seu poder.
    Essa questão do judeu já está batida. É bonito defender os judeus.
    Agora questiona sobre os islãs?
    Fala que um dia os homens foram crianças inocentes e o mundo deixou eles crescerem numa cultura onde se tornariam perversos terroristas... etc e tal
    tem que respeitar a soberania dos países.
    Então somos todos cúmplices. Formamos os bodes expiatórios do momento para esconder nossa imundície?
    Não é estranho?
    Pra que ONU? Etc?
    Pra que uma Organização Internacional de Direitos Humanos?
    Se a soberania de cada país e seus absurdos estão em primeiro lugar?
    O mundo apoia a transformação de crianças em monstros para depois puni-los?
    Não é um sistema mundial imundo e perverso?
    Eu não sei nada dessa área em termos de estudo. Não tenho estômago nem pra lidar com o pouco que vejo. Mas, pra mim, Rosseau falou uma verdade que é básica: -"O homem é naturalmente bom, a sociedade que o corrompe"
    Vivemos num mundo que constrói sub-mundos para serem seus bodes expiatórios.
    vivemos num mundo que produz guerra.
    até pra não haver aumento exagerado da população em detrimento dos bens de consumo.
    Não somos mais tão crianças a ponto de conseguirmos não ver tudo isso. ...
    Duro é ver o quanto somos impotentes e covardes diante da real realidade.
    É o jeito. ... confesso que também acabo optando pelo joguinho do faz de conta...

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  5. Acho que podemos atualizar melhor essa questão.
    Morte às crianças do Islã. Morte às crianças muçulmanosas.
    Morte a tudo que questiona a cultura dos mais poderosos e desestabiliza seu poder.
    Essa questão do judeu já está batida. É bonito defender os judeus.
    Agora questiona sobre os islãs?
    Fala que um dia os homens foram crianças inocentes e o mundo deixou eles crescerem numa cultura onde se tornariam perversos terroristas... etc e tal
    tem que respeitar a soberania dos países.
    Então somos todos cúmplices. Formamos os bodes expiatórios do momento para esconder nossa imundície?
    Não é estranho?
    Pra que ONU? Etc?
    Pra que uma Organização Internacional de Direitos Humanos?
    Se a soberania de cada país e seus absurdos estão em primeiro lugar?
    O mundo apoia a transformação de crianças em monstros para depois puni-los?
    Não é um sistema mundial imundo e perverso?
    Eu não sei nada dessa área em termos de estudo. Não tenho estômago nem pra lidar com o pouco que vejo. Mas, pra mim, Rosseau falou uma verdade que é básica: -"O homem é naturalmente bom, a sociedade que o corrompe"
    Vivemos num mundo que constrói sub-mundos para serem seus bodes expiatórios.
    vivemos num mundo que produz guerra.
    até pra não haver aumento exagerado da população em detrimento dos bens de consumo.
    Não somos mais tão crianças a ponto de conseguirmos não ver tudo isso. ...
    Duro é ver o quanto somos impotentes e covardes diante da real realidade.
    É o jeito. ... confesso que também acabo optando pelo joguinho do faz de conta...

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    Respostas
    1. O judeu errante aqui é uma categoria. Sim o nosso mundo é, e sempre foi, perverso. O judeu errante na Europa de outrora é o refugiado islâmico de hoje. O judeu errante é uma categoria que pode ser aplicada a todos e a qualquer um.

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  6. Que bom que você não me achou burra...
    eu tento ser cristã... e ouço pasma comentários dessa ordem no meu meio... como se um povo nascesse marcado pra ser menos GENTE que outro...
    Parabéns amigo! Belo estudo! Questão de alta relevância ao meu ver!

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  7. Que bom que você não me achou burra...
    eu tento ser cristã... e ouço pasma comentários dessa ordem no meu meio... como se um povo nascesse marcado pra ser menos GENTE que outro...
    Parabéns amigo! Belo estudo! Questão de alta relevância ao meu ver!

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