De
acordo com certas teses liberais norte-americanas, a democracia é o objetivo
final de todos os povos. Qualquer ser humano, se perguntado, deseja a
democracia. A democracia é o caminho para a paz e o desenvolvimento de toda a
humanidade, já que democracias jamais entraram em guerra entre si. A democracia
é democrática! Obviamente a última assertiva é uma extrapolação irônica da
minha parte, mas serve muito bem para marcar a estupidez e o cinismo de tal
tese.
Em
primeiro lugar, o que é democracia? Para os norte-americanos, lato sensu, resume-se a eleições
regulares, representantes regulados pela opinião pública e economia de mercado.
Mas sempre há limites. Respeita-se a democracia por aí, desde que isso não
interfira em interesses inconfessos. FHC, ao mandar tropas espancarem
manifestantes desarmados (Porto Seguro, 22 de abril de 2000), afirmou que
aquilo foi necessário para proteger a democracia brasileira (?). George W.
Bush, na mesma linha fascista, afirmou que levaria a democracia ao Iraque.
Os
conceitos são polissêmicos, assumindo diversos significados ao longo do tempo e
ao mesmo tempo. Segundo Michael Freeden, professor de Oxford, a tentativa de
fixar um conceito é uma postura ideológica. Dito em outras palavras, a
democracia virou um albergue espanhol (termo novamente em evidência com a crise
do Euro): um local que contém apenas os objetos que os hóspedes levaram. A
melhor definição para democracia continua sendo uma brincadeira do saudoso
Millôr Fernandes: “democracia sou eu mandar em você; ditadura é você mandar em
mim”.
Mesmo
entre os helenos a democracia não era um valor positivo, ao contrário do que
afirmam os informados pelo senso comum. Clístenes contribuiu para implementar a
isonomia, igualdade de regras para os
cidadãos. Os críticos do sistema alertavam que tal igualdade seria destrutiva,
pois levaria a um poder do demos:
seria algo anárquico. Democracia, nesse sentido, era claramente uma palavra
pejorativa. Outrossim, havia também métodos para eliminar ‘ameaças’ ao sistema:
o ostracismo, o qual podia ser manipulado para servir a interesses
particulares, demonstrado por escavações arqueológicas; e a στασις (stásis), termo que significa divisão, partido político,
dissonância, sedição, revolta ou guerra civil. A στασις tanto podia
significar uma revolta dos estamentos desfavorecidos contra o sistema, quanto
um ataque dos poderosos contra elementos ‘ameaçadores’. Mutatis mutandis, o fim de Tibério Graco e seguidores em Roma, aconteceu
quando o Senado suspendeu a lei romana, e os senadores formaram milícias e
massacraram os reformistas. Depois disso, tudo voltou à normalidade. Quem nos informa
isso é Moses Finley.
Portanto, muito cuidado, querido
leitor, ao pensar o termo democracia. Quais são os limites possíveis e impostos
à mesma? Creio ser essa a questão fundamental.