domingo, 14 de outubro de 2012

A democracia obliterada pela democracia



         De acordo com certas teses liberais norte-americanas, a democracia é o objetivo final de todos os povos. Qualquer ser humano, se perguntado, deseja a democracia. A democracia é o caminho para a paz e o desenvolvimento de toda a humanidade, já que democracias jamais entraram em guerra entre si. A democracia é democrática! Obviamente a última assertiva é uma extrapolação irônica da minha parte, mas serve muito bem para marcar a estupidez e o cinismo de tal tese.
         Em primeiro lugar, o que é democracia? Para os norte-americanos, lato sensu, resume-se a eleições regulares, representantes regulados pela opinião pública e economia de mercado. Mas sempre há limites. Respeita-se a democracia por aí, desde que isso não interfira em interesses inconfessos. FHC, ao mandar tropas espancarem manifestantes desarmados (Porto Seguro, 22 de abril de 2000), afirmou que aquilo foi necessário para proteger a democracia brasileira (?). George W. Bush, na mesma linha fascista, afirmou que levaria a democracia ao Iraque.
         Os conceitos são polissêmicos, assumindo diversos significados ao longo do tempo e ao mesmo tempo. Segundo Michael Freeden, professor de Oxford, a tentativa de fixar um conceito é uma postura ideológica. Dito em outras palavras, a democracia virou um albergue espanhol (termo novamente em evidência com a crise do Euro): um local que contém apenas os objetos que os hóspedes levaram. A melhor definição para democracia continua sendo uma brincadeira do saudoso Millôr Fernandes: “democracia sou eu mandar em você; ditadura é você mandar em mim”.
         Mesmo entre os helenos a democracia não era um valor positivo, ao contrário do que afirmam os informados pelo senso comum. Clístenes contribuiu para implementar a isonomia, igualdade de regras para os cidadãos. Os críticos do sistema alertavam que tal igualdade seria destrutiva, pois levaria a um poder do demos: seria algo anárquico. Democracia, nesse sentido, era claramente uma palavra pejorativa. Outrossim, havia também métodos para eliminar ‘ameaças’ ao sistema: o ostracismo, o qual podia ser manipulado para servir a interesses particulares, demonstrado por escavações arqueológicas; e a στασις (stásis), termo que significa divisão, partido político, dissonância, sedição, revolta ou guerra civil. A στασις tanto podia significar uma revolta dos estamentos desfavorecidos contra o sistema, quanto um ataque dos poderosos contra elementos ‘ameaçadores’. Mutatis mutandis, o fim de Tibério Graco e seguidores em Roma, aconteceu quando o Senado suspendeu a lei romana, e os senadores formaram milícias e massacraram os reformistas. Depois disso, tudo voltou à normalidade. Quem nos informa isso é Moses Finley.
         Portanto, muito cuidado, querido leitor, ao pensar o termo democracia. Quais são os limites possíveis e impostos à mesma? Creio ser essa a questão fundamental.