sexta-feira, 1 de abril de 2016

Uma farsa em vários atos para pensar o Brasil:


1. Pequena peça pedagógica

- Cidadão de bem: aquela menor está sendo estuprada!!!!!
- Estuprador: eu luto contra o comunismo! Vocês querem que o Brasil vire Cuba, onde não há livre mercado? Ou vire uma ditadura sanguinária como a Coreia do Norte? Precisamos salvar nossas crianças do comunismo! Esse Cidadão de bem e essa Dimenor são comunas! Não podemos permitir que o Brasil vire uma ditadura comunista como a Venezuela! Meu partido é o Brasil! Brasil acima de tudo!
- Coxinhas: Ooohhhhh! Lincha! Lincha! Mata! Mata!
- Cidadão de bem e Dimenor morrem desmembrados.
Pano rápido.


2. FAQ (Frequently asked questions, ou perguntas frequentemente perguntadas):

a) A Esquerda vai instalar uma ditadura comunista do mal no Brasil?
Não. Falar em estado comunista é tão absurdo quanto dizer que existe alguém que seja honesto, inteligente e filiado ao PSDB. O comunismo pressupõe a destruição prévia do estado, a nível planetário.

b) Então a Esquerda vai implementar uma ditadura socialista no país?
Não de novo. O discurso e a prática dos partidos de esquerda apontam, até agora, para a promoção de justiça social.

c) Mas justiça social não significa comunismo?
Errado novamente. As classes dominantes nacionais é que classificam como "comunismo" qualquer questionamento aos próprios privilégios e exploração das classes inferiores.

d) Mas é justo tomar a riqueza de quem produz?
Os proprietários dos meios de produção já fazem isso explorando os assalariados. Quem produz carros? O CEO da GM? Ou os operários?

e) Se é assim, então porque a Rede Goebbels não diz a verdade?
A quem você acha que a Goebbels serve?

- Estuprador de menores: esse respondedor é comuna! Cuba! Coreia do Norte! Venezuela!
- Coxinhas: Oooooh! Lincha! Lincha! Mata! Mata!


3. Entrevista com o Coxinha

- Porque você é contra a bolsa família?
- Esse tipo de coisa só estraga os pobres. Quando eu viajo de avião, nunca encontro vivalma para carregar minhas malas, como nos filmes. Esses vermes imprestáveis só querem se encostar no governo! Tem que ter menos estado!
- Então o senhor é contra todo e qualquer subsídio, como bolsas de estudo para classe média fazer mestrado, doutorado e pós doutorado? Ou financiamento de imóveis de alto luxo com fundos do FGTS?
- Claro que não! A boa sociedade branca merece isso! Somos melhores! Os vagabundos pardos e pobres é que tem que se virar para chegar no nosso nível! As oportunidades são iguais para todos!
- Mas o senhor não era pobre até uns dez anos atrás e ascendeu para a baixa classe média graças aos programas do governo? Não estou entendendo suas respostas.
- Estuprador aparece: Esse entrevistador é comuna!!!!! Cuba! Venezuela!!!!
- Coxinhas em coro: Ohhhhh!!!! Lincha! Lincha! Mata! Mata!


4. Justiça Objetiva

- JJ: Eu sou o Juiz Justiceiro! Eu combato a pedofilia para salvar o Brasil! Quem não gosta de pedofilia, tem que me apoiar cegamente!!!!
- Transeunte: Hã?
- JJ: Cidadão! Você pode provar que não é pedófilo?
- Transeunte: É claro que não sou! De onde tirou isso? E onde fica a presunção da inocência?
- JJ: Não está nada claro aqui. Eu que digo quem é inocente e quem não é. Quem não deve, não teme! Mostre sua carteira e seu celular! Vou arrombar a sua casa para provar que você é um pedófilo!
- Transeunte empurrando o JJ: Você é maluco! Fica longe de mim!
- JJ conciliador: Calma, calma… Lembra daquela garota do sexto ano que você achava bonita?
- Transeunte com cara de bobo: Lembro! Era apaixonado por ela…. Ficava suspirando….
- JJ: Pedófilo!!!!!!!!!!! Confessou!!! Queria pegar uma Dimenor!!!!!
- Transeunte: Seu idiota! eu era menor também!
- JJ: Não me venha com desculpas! Teje preso!!!!
- Estuprador: esse pedófilo é comuna!!!! Cuba! Venezuela! Coreia do Norte!
- Coxinhas em coro: Ohhhhhh!!!!! Lincha! Lincha! Mata! Mata!


5. Petição

- Toc! Toc! Toc!
- Sim?
- Cidadão! Você tem a obrigação de assinar essa petição voluntária contra criminosos gordos e carecas que usam óculos. Eles são portadores de tendências perigosas! Tem que ser eliminados pelo bem de nossa democracia!
- Eliminar alguém pela democracia não é estranho? Perseguir alguém antes de cometer um crime não é ilegal?
- Aí é que está! Eles não fizeram nada errado ainda, mas podem fazer. Temos que matá-los para preservar a liberdade! Assine! Assine!
- Você ainda não percebeu que além de ser gordo e careca, eu também uso óculos?
- Não interessa! É sua obrigação assinar essa petição voluntária! 
- Cara, você é maluco! Saia da minha porta!!!!
- Estuprador de menores: Comuna!!!!!! Cuba!!!!! Venezuela!!!! Coreia do Norte!!!!!!!!! 
- Coro de coxinhas: Ohhhhhhh! Lincha! Lincha! Mata! Mata!
- Esperem ele assinar a petição primeiro!

6. Reunião dos caçadores de comunistas

- Presidente da mesa: Vamos começar a nossa sessão! Precisamos salvar o mundo dessa coisa odiosa que é o comunismo. É o nosso dever sagrado…
- Membro da platéia, no fundo: O que é um comunista?
- Presidente: O comunista é tudo de ruim! Ele representa todo o mal! Ele destrói a sociedade, mina os costumes! Ele se diz seu amigo, e lhe trai, levando para a cama sua mulher, filha, irmã e até a sua mãe! Argh! Aaaaargh! (levanta e sai correndo, arrancando os cabelos)
- Vice presidente da mesa: Desculpem essa cena. Daqui a algumas horas ele voltará. Nunca mais foi o mesmo, depois que a esposa, a filha, a irmã e a mãe saíram numa viagem pelo país, numa kombi dirigida por um hiponga comunista ateu judeu criminoso.
- Membro da platéia: Como posso reconhecer um comunista?
- Vice presidente: O comuna age nas sombras. O comuna envenena as nossas águas com flúor. O comuna é uma ameaça à boa sociedade. O comuna se reúne com outros comunas para conspirar!
- Membro da platéia: Essa reunião não é uma conspiração secreta?
- Todos (agarrando o pescoço do colega ao lado): Morra, seu comuna maldito! Morra!!!!!!!!

Finis 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Somos tão jovens e tão reacionários, à maneira da... Globo!




O filme sobre o início da carreira musical de Renato Russo, Somos tão jovens, prometia ser problemático. Um amigo já havia manifestado a preocupação de cariocas fazendo um filme sobre Brasília. Mas o buraco é muito mais embaixo. É um filme da Rede Globo sobre Brasília. Mais especificamente sobre a primeira geração do rock’n’roll brasiliense.
Há diversos modos de apresentar personagens em narrativas - sejam elas literárias, cinematográficas, em quadrinhos ou qualquer outro meio. Escritores ou diretores sérios podem fazer um retrato inicial completo, seguido de eventos que confirmam; podem construir o personagem a partir dos acontecimentos, num caminho contrário ao primeiro; podem fazer um personagem movente, o qual modifica-se durante o curso da narrativa; pode, por último, narrar o fluir da consciência do personagem, sem barreiras temporais.[i] Entretanto nesse filme específico não acontece nada disso. Renato Russo é retratado através de um clichê: o menino-mimado-sem-noção-mas-com-talento. Tal clichê está a anos-luz de uma verdadeira construção de personagem. Os produtos típicos da indústria cultural - para consumo imediato das massas - não podem ser mais complexos do que isso.
O filósofo e historiador italiano Benedetto Croce afirmava que toda história é história contemporânea. Tal assertiva remete à seguinte questão: pouco importa se o evento narrado tenha ocorrido há décadas, séculos ou milênios. Os conflitos do aqui e agora serão o filtro para apresentação daqueles eventos. A título de exemplo, pode-se citar a versão do historiador argentino León Pomer sobre a Guerra do Paraguai. Pomer, ao retratar o Paraguai como vítima da agressão inglesa via Brasil e Argentina, transferiu a luta contra o imperialismo Yankee (uma questão de ordem nos anos 1960, quando ele escreveu sobre a guerra) para aquele conflito no século XIX. Ao retratar no filme os conflitos entre punk rock e músicas mais elaboradas (assim colocadas na película), sente-se com toda a clareza a mão da produtora global. A primeira seria música infantil, a segunda seria música séria. Nos domínios do Projac, a música da mulher gordinha do Roberto Carlos seria  considerada superior a qualquer uma do Dead Kennedys. A Rede Globo ainda não saiu da Guerra Fria.
Em suma, caro leitor, o filme não é decepcionante porque já não se esperava qualquer qualidade artística mesmo.



[i] Cf. Donaldo Schüler. A construção da Ilíada: uma análise de sua elaboração. Porto Alegre: L&PM, 2004, p. 54.

domingo, 14 de outubro de 2012

A democracia obliterada pela democracia



         De acordo com certas teses liberais norte-americanas, a democracia é o objetivo final de todos os povos. Qualquer ser humano, se perguntado, deseja a democracia. A democracia é o caminho para a paz e o desenvolvimento de toda a humanidade, já que democracias jamais entraram em guerra entre si. A democracia é democrática! Obviamente a última assertiva é uma extrapolação irônica da minha parte, mas serve muito bem para marcar a estupidez e o cinismo de tal tese.
         Em primeiro lugar, o que é democracia? Para os norte-americanos, lato sensu, resume-se a eleições regulares, representantes regulados pela opinião pública e economia de mercado. Mas sempre há limites. Respeita-se a democracia por aí, desde que isso não interfira em interesses inconfessos. FHC, ao mandar tropas espancarem manifestantes desarmados (Porto Seguro, 22 de abril de 2000), afirmou que aquilo foi necessário para proteger a democracia brasileira (?). George W. Bush, na mesma linha fascista, afirmou que levaria a democracia ao Iraque.
         Os conceitos são polissêmicos, assumindo diversos significados ao longo do tempo e ao mesmo tempo. Segundo Michael Freeden, professor de Oxford, a tentativa de fixar um conceito é uma postura ideológica. Dito em outras palavras, a democracia virou um albergue espanhol (termo novamente em evidência com a crise do Euro): um local que contém apenas os objetos que os hóspedes levaram. A melhor definição para democracia continua sendo uma brincadeira do saudoso Millôr Fernandes: “democracia sou eu mandar em você; ditadura é você mandar em mim”.
         Mesmo entre os helenos a democracia não era um valor positivo, ao contrário do que afirmam os informados pelo senso comum. Clístenes contribuiu para implementar a isonomia, igualdade de regras para os cidadãos. Os críticos do sistema alertavam que tal igualdade seria destrutiva, pois levaria a um poder do demos: seria algo anárquico. Democracia, nesse sentido, era claramente uma palavra pejorativa. Outrossim, havia também métodos para eliminar ‘ameaças’ ao sistema: o ostracismo, o qual podia ser manipulado para servir a interesses particulares, demonstrado por escavações arqueológicas; e a στασις (stásis), termo que significa divisão, partido político, dissonância, sedição, revolta ou guerra civil. A στασις tanto podia significar uma revolta dos estamentos desfavorecidos contra o sistema, quanto um ataque dos poderosos contra elementos ‘ameaçadores’. Mutatis mutandis, o fim de Tibério Graco e seguidores em Roma, aconteceu quando o Senado suspendeu a lei romana, e os senadores formaram milícias e massacraram os reformistas. Depois disso, tudo voltou à normalidade. Quem nos informa isso é Moses Finley.
         Portanto, muito cuidado, querido leitor, ao pensar o termo democracia. Quais são os limites possíveis e impostos à mesma? Creio ser essa a questão fundamental.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Morte ao judeu errante!



         Walter Scott (1771-1832), escritor britânico, foi o inventor do gênero ‘romance histórico’, no qual a trama se desenrola no meio de eventos supostamente reais. Um exemplar disso é Ivanhoe[1] (1819), onde o personagem principal regressa das Cruzadas e auxilia o rei Ricardo Coração de Leão a recuperar o trono, ao final do século XII. Outro personagem desse romance é o judeu Isaac de York. Perseguido por quase todos, foi protegido por Ivanhoé ao longo da narrativa por dois motivos: 1) não podia se proteger sozinho e 2) sendo o ‘mocinho’ uma pessoa boa e generosa, não deixaria os fortes oprimirem os fracos.
         Isaac de York reflete, numa confluência do medievalismo idealizado nos oitocentos com as ideologias dos Estados nacionais, um estereótipo duplo: era um usurário pecador segundo os medievos cristãos, e ficava à margem da ‘vida nacional’, recusando os valores fundamentais da nação. Era o judeu errante: um perigo aos valores estabelecidos. Algo bem interessante e revelador é o fato que o judeu errante não precisa ser necessariamente judeu. Wachirawut, monarca do Sião (1910-1925), estudou na Inglaterra e importou o nacionalismo e antissemitismo europeus. Contudo, ele identificou os comerciantes chineses, estabelecidos no reino, como inimigos em dois panfletos bem virulentos: Os judeus do oriente (1914) e Travas nas nossas rodas (1915).[2]
         Segundo Jacques Lacan, a identidade do ser é construída sempre em contato com o(s) outro(s). Do ponto de vista semântico, não se pode dizer o que algo é, sem dizer o que não é. O civilizado existe em função do bárbaro, o bonito o é em relação ao feio e assim por diante. Mutatis mutandi, a identidade nacional sempre é construída em confronto com os que não se encaixam no modelo nacional. Imaginemos uma sala com um gaúcho, um mineiro e um acreano. As diferenças entre os três serão gigantescas. No momento em que um argentino for introduzido no ambiente, os três se reuniriam num canto e proclamariam: “não somos isso! Somos brasileiros!”
         Para construir a imagem nacional – obviamente isso não é feito numa reunião secreta, como descrito em diversas teorias da conspiração – o estereótipo do inimigo é fundamental. Estereótipo, pois não há necessariamente qualquer correspondência com grupo de seres viventes. Há uma frase bem reveladora do Reichsmarshall nazista Hermann Göring: “eu decido quem é judeu e quem não é”. A categoria pode ser imputada a qualquer um. Assim, o ‘judeu’ na Alemanha Nazista não era necessariamente judeu. Ele tornou-se a base para definir o 'inimigo objetivo'. Os inimigos objetivos (vide Hannah Arendt[3]) não precisam fazer nada errado, já que eles são portadores de tendências perigosas ao Estado. Podem e devem ser eliminados.
         Obviamente a figura do judeu errante não está circunscrita ao passado. Existe ainda hoje e não há sinais de que vá desaparecer tão cedo. Na década de 1950, nos Estados Unidos, o judeu errante era o comunista; no século XXI, o terrorista. Na extinta União Soviética, era o pequeno burguês ou o contrarrevolucionário ou o kulak (camponês remediado); os três tipos acabavam confluindo num só. Em Israel, o judeu errante é o palestino.
          O jurista alemão Carl Schmitt definia o soberano como aquele que decide sobre o estado de exceção.[4] Podemos avançar nessa definição – como já fez Vladimir Safatle,[5] embora de modo tímido – e definir o soberano como quem aponta os ‘judeus errantes’. Mais do que excluí-los da proteção legal do Estado, eles se convertem em objeto de temor e ódio das massas. Nada como um inimigo para unir o corpo, levar a culpa e calar os dissidentes.



[1] Walter Scott. Ivanhoe. London: Penguin Books, 1994.
[2] Benedict Anderson. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 149.
[3] Hannah Arendt. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
[4] Carl Schmitt. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 07.
[5] Vladimir Safatle. ‘Do uso da violência contra o Estado ilegal’. In Edson Teles & Vladimir Safatle (org). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, pp. 238-9, n. 03.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

O Cargueiro Negro


Antes de mais nada, há a Ópera dos três vinténs, de Berthold Brecht. Na cena 2 do 1º ato, Polly canta a maldição entoada pela copeira Jenny, onde um navio fantasma (the black freighter) chegaria à cidade e eliminaria a todos, sem exceção. Movimento implacável, justiça revolucionária: fiat justitia, pereat mundus. Este espaço servirá para desenvolver algumas ideias radicais, numa linguagem mais acessível.